Este texto foi escrito na época acadêmica, cujo teor e valor é estritamente literário científico. Uma homenagem ao escritor e autor - Patrick Süskind - do livro A Pomba
Em uma dessas esquinas nem muito limpa e nem muito suja há sempre uma padaria, uma banca, um ponto de ônibus e outras lojas. Foi numa loja dessa esquina movimentada que Richard resolveu entrar, era um sebo. Tinha ainda meia hora do seu horário de almoço, já tinha almoçado aquela comida de sempre, aquele prato de sempre. Arroz, bisteca, feijão, salada e mandioca. Não suportava beterraba. Lembrou da fila, a expressão de cada cidadão que observou. Um gordo de bigode que usava aqueles ternos quase sujos, quase limpos. Uma mulher magra com aqueles vestidos sempre de manga curta. Os dois jovens que pareciam trabalhar no escritório de contabilidade. Tinha também um policial que sempre almoçava sozinho e inquieto. Era um restaurante caseiro, pequeno, com aquelas toalhas feias que parecem mal lavadas. Tudo de madeira que quase quebra de tão antigo. Richard nunca ligou muito pelo ambiente, queria mesmo comer barato e economizar para realizar seu sonho.
Dentro
do sebo aquele cheiro de mofo como das toalhas do restaurante, de papel velho,
de gente esquisita, de gente que não olha para ninguém, só mesmo para os
livros. O dono um senhor bem velho, de óculos, franzino, cabelos branquinhos e
um ar aborrecido de intelectual frustrado.
Richard
gosta do cantinho com os romances, já perdeu a conta de tantos que já leu.
Sempre comprava um livro, não conhecia muitos escritores, gostava da capa e não
sabia nem pronunciar o nome do autor de alguns deles. Apenas gostava ou não da
leitura, mas sabia escolher os melhores.
Mexeu
em todos os livros e não achou nada interessante, foi quando o dono da loja
chegou com uma caixa e dela retirou muitos livros e os jogou em cima dos outros
sem nem arrumá-los. Richard fez uma cara de mal. Não gostava que tratassem os
livros daquela maneira, tão friamente, como se não houvesse personagens
sensíveis dentro deles, porém eram mais livros chegando, deixou para lá sua
raiva. Olhou todos os livros e um deles lhe chamou a atenção. Não pela capa,
mas pelo título: A pomba. Deu um riso irônico e pensou como poderiam colocar um
título tão sem graça, tão sem interesse, tão insignificante. A Pomba. Uma
pomba. Ainda mais naquela cidade grande que ninguém gostava de pomba. Todos
passavam por elas sem enxergá-las, eram aves totalmente sem encantamento e
ainda transmitiam muitas doenças.
Sempre
com seu jeito diferente e instigador, muitas vezes investigador, afinal era um
segurança, observava tudo ao seu redor. Apesar de ser segurança não estava
trabalhando como tal. Emprego estava difícil, só conseguiu de motoqueiro,
precisamente entregador de pizza. Não suportava ver pizza, nem mesmo sentir o
cheiro daquela massa que era espremida, jogada pra cima, enrolada, desmanchada
o tempo todo pelos amigos que trabalhavam na cozinha. Dizia amigos, mas Richard
vivia sozinho e quase não saía, economizava para realizar seu grande sonho.
Não
teve dúvida, já estava na hora de voltar para o serviço, resolveu levar o livro
de título sem graça. Só comprava assim. Só os livros que mais chamava sua
atenção por algum detalhe estranho, fosse ruim ou interessante. Esse era pelo
lado ruim, mas queria ver do que se tratava o livro. E depois era bem barato,
não gostou muito da espessura. Gostava de livros mais grossos, esse tinha lá
suas cem páginas. Pagou e saiu.
A tarde findara e Richard caminha para seu lar. Já dentro do
metrô, pega seu livro e começa a ler. Começa pelas orelhas. De um lado uma foto
e uma síntese sobre o autor, um alemão veterano de guerra. Do outro nada tinha.
Sorriu com sabedoria. Como sempre não se enganou. Sabia mesmo escolher um bom
livro. Com certeza era uma história de guerra, logo entendeu o título. A pomba
representa a paz. Guerra e paz. Gostava de filmes de guerra, iria gostar da
história com certeza. Iniciou a leitura avidamente, mas morava perto, não deu
para ler muito.
Richard
entra na pensão, cumprimenta dona Matilde e senhor Lino. Os dois são os
proprietários. Um casal de idoso bem aparentado e organizado em excesso. A
pensão era o oposto do restaurante. Tudo é tão limpo e cheiroso e o melhor, não
muito caro. A pensão tem vinte quartos. Dez em cima, dez embaixo. Richard mora
no primeiro quarto do andar de cima. Tem uma janela discreta de frente pra rua,
uma cama, uma mesa e um armário. No armário sempre coloca na parte de cima seus
livros. São muitos livros, todo tipo de literatura. São muitos autores
diferentes e ele os separa por livros nacionais e estrangeiros. Engraçado é que
sempre coloca alguns livros no lugar errado. Stanislaw Ponte Preta foi colocado
no lado dos estrangeiros e José Maria Eça de Queirós foi colocado no lado
nacional, no entanto isso não importa muito, não é?
Richard
toma seu banho, coloca uma bermuda cor de laranja e uma camiseta de cor branca,
com sandálias de borracha desce para jantar. Após o jantar volta ao quarto,
joga-se na cama e pega seu livro novo, tão velho, achado num sebo na esquina da
Rua Teodoro Sampaio com Fradique Coutinho. A cada página lida seu olhar e suas
expressões faciais se alteravam constantemente, não conseguia nem piscar, lia
sem parar, como se a leitura o sugasse, o digerisse, o agarrasse.
A
leitura não tinha nada de guerra, não havia tanques, não havia metralhadoras e
nem qualquer pista de planos para resgatar alguém ou mesmo interferir em
guerrilhas civis ou até mesmo salvar a filha do general. Decepção? Não. Richard
foi envolvido por uma leitura diferente, bem mais envolvente e interessante.
Uma trama psicológica que o assustava, uma história psicótica, macabra com uma
simples pomba. Um animalzinho tão simples, não? Doenças vêm de todos os
lugares, não é só da infeliz da pomba. Como podia imaginar, havia lido que o
autor viveu a grande guerra mundial. Enfim, mesmo não sendo de guerra e seus
materiais bélicos não deixava de ser uma guerra com emoções e sentimentos
únicos, incontestáveis. Quase terminou a leitura antes mesmo de seu horário de
dormir. Tinha que dormir, afinal acordava muito cedo.
Richard
ficou impressionado com a história do livro. Como podia um homem velho, um
vigia ter medo de pomba. Como podia um autor escrever tão bem ao ponto da gente
acreditar que alguém deixa de viver só porque encontrou uma pomba quieta na
porta de seu quarto. Uma pomba que o encarou e arrancou a sua alma. A pomba não
o deixava passar pra mais nada. Ele passou a fazer suas necessidades
fisiológicas dentro do quarto, viveu sem banho, sem ir trabalhar, sem dormir,
sem comer, sem se mexer, morreu? Ainda não sabe. Não terminou de ler. Ele não
gostou muito da história, quer dizer gostou, mas ficou impressionado, com medo
até. Ao mesmo tempo em que também ficou indignado com o homem, um homem com
medo de uma pomba.
Ao
amanhecer Richard se levanta atordoado, um pesadelo havia visitado seu sono.
Uma pomba preta estava na porta de seu quarto com os olhos muito vermelhos, os
pés com os dedos todos cortados, sem bico e as penas todas ensangüentadas e o
sangue escorrendo em grande quantidade para debaixo de sua porta, escorrendo
nos rejuntes até o ralo da pia, como se fosse possível uma ave ter tanto sangue
assim. O pior foi que o sangue desviou o curso e subiu pelos pés de sua cama,
invadindo suas cobertas e chegando às suas narinas por onde entrava e depois
saía por sua boca e seus ouvidos e nesse instante ele acordou com o som do
despertador. Acordou suando, resolvido em parar já a leitura de seu livro.
Procurou-o e o achou debaixo da cama e desesperado viu que havia um risco de
sangue na capa, bem no bico da pomba. Não sabia se já estava ali ou não, ou...
Não queria nem pensar. Jogou o livro dentro de seu armário. Abriu a porta e
desmaiou.
Richard
acordou em um hospital e foi recobrando a memória. Matilde e Lino entram no
quarto, Matilde lhe entrega flores. Conversam e Richard fica sabendo que passou
horas, desacordado e que quando o encontraram estava com a cabeça sangrando,
precisamente na boca e ouvidos, mas como não encontraram cortes o levaram para
fazer mais exames. Richard quase desmaiou de novo, lembrou-se do que viu na sua
porta e do pesadelo que teve. Matilde o segurou, sentiu que ficou branco
demais. Calma, Richard. Tudo já passou. Você já está medicado e não tem nada de
grave. Disseram que foi só o calor. Nossos dias estão cada vez mais quentes. A
temperatura tem subido exageradamente. Já até lhe liberaram, viemos
buscá-lo.
Eles
chegam à pensão. Richard corre para seu quarto, parece que vai enlouquecer. A
fobia já toma conta de seus pensamentos e atos. Reconhece que uma pomba pode
sim acabar com um homem. Abre o armário, pega o livro e desce com ele, vai até
o outro lado da rua e o atira dentro da lixeira. Mesmo se sentindo aliviado por
se livrar daquele aterrorizante livro também se sentia totalmente acabado e
amargurado por saber que seu sonho havia terminado bem ali, na lixeira, afinal,
estava colecionando os livros para abrir o seu próprio sebo. Queria ser dono de
um sebo com todos os livros por ele lido. Saberia dar informações sobre todos.
Quase chorava de tristeza, mas era melhor do que enlouquecer de vez. Não queria
mais saber de livros.
Estava
tão aturdido em seus pensamentos e tão impressionado com seu acidente lá na
pensão, que atravessou a rua sem olhar. Um carro em alta velocidade lhe
arremessou longe. Caiu de bruços, rosto virado para direita, as pernas
dobradas, a camisa rasgada e um pé sem sapatos, inerte. Olhar fixo, em pânico,
estático. Em minutos, um homem chegou bem perto e ficou apavorado com o olhar
do morto. Era uma expressão de pânico, de muito medo, encarando a porta aberta
do prédio. Ficou impressionado e quando estava deixando o lugar, viu uma pomba
preta morta no canto da escada toda ensangüentada, sem bico e pés aleijados bem
na direção do olhar apavorado do defunto. Fez o sinal do pai e saiu às pressas.