CENA INUSITADA

Diariamente caminho com Klark - um pequeno caniche parisiense impuro - seu pai um cão da raça bichon à poil frisé; pela descrição das duas raças a sua índole está marcada por esta. Isto são apenas detalhes, o que quero dizer é que nessas caminhadas sempre recolho as fezes dele e jogo na caçamba em frente ao prédio, no qual moramos.

A surpresa foi ontem, quase anoitecendo, quando fui jogar o saquinho das fezes do klark na lixeira. Levei o maior susto ao erguer a mão com o saquinho para jogar na lixeira. Foi por pouco que não o arremessei no rosto de um menino, um morador de rua. Meu reflexo foi bem maior e parei a mão no ar, atônita. Fiquei perplexa com a cena. Um menino com uns sete ou oito anos de idade sentado dentro da lixeira do prédio. O mais impressionante era que estava recostado numa das laterais da caçamba: lendo! Talvez até vendo gravuras, não sei. Parecia ler, pois movimentava os lábios.

Depois do susto e olhando melhor reparei que para o menino pouco importava estar dentro de uma lixeira imunda e com cheiro absolutamente nada agradável. Havia em seu olhar uma paz distinguível, uma tranquilidade em seus movimentos que nem sabia mais o que me surpreendia; se era um menino lendo dentro de uma lixeira ou a sua paz em ler dentro de uma lixeira. Era uma paz de Jesus Cristo nas festas. Havia paz com alegria e satisfação, enquanto ao redor muitas pessoas extremamente estressadas voltavam para seus lares confortáveis. Buzinas, motores, filas e mais filas de carros, pessoas andando quase que correndo e a noite apagando mais um dia.

Ele parecia ler sentado em um trono como um rei descansado, como se todos os seus discípulos trabalhassem e ele se recolhia em seus aposentos para mais uma relaxante leitura. Seu reino já estava em perfeita harmonia, em pleno silêncio. Era tanta harmonia, que eu não tive coragem de interrompê-lo, acreditem? Não tive. Fui embora sem dar uma palavra e nem ele falou nada. Cuidadosamente deixei o saquinho debaixo de uma árvore próxima à lixeira.

Subi ao apartamento ainda descrente de que foi uma cena real, rapidamente narrei para minha sobrinha o acontecido. Ela não acreditou e foi até a lixeira. Talvez por conhecer o que iria encontrar, não demonstrou tanto impacto com a cena e ainda conseguiu perguntar ao menino de prontidão:

- O que você está fazendo aí menino? 

A resposta veio imediata como a pergunta.

- Estou lendo! Na maior calma e paz do mundo.

Fomos embora, não havia qualquer indício de que precisava de algo ou alguém, ele estava como Jesus na sua biblioteca.