Era
escura e sem forma como o princípio da criação. Perambulou entre vidas e fatos.
Carregou fardos leves e pesados. Tropeçou em pedras e edificou fortalezas.
Acendeu sua luz e emprestou à lua, satélite de sua orbita. Não olhou para trás,
peregrinou sem desistir. Acorrentou seus medos e os jogou no latão do quintal.
Todos os dias jogava fora o que não mais servia para seu crescimento. Houve
época que dizimava dores. Falava demais, questionava demais, enfurecia-se
demais. Lutava com as ideias e não atravessava uma rua para construir uma
ponte. Forçava escrever mesmo sem a técnica exigida nos parâmetros humanos.
Abria cortinas e mais cortinas, entretanto poucas eram as janelas e as salas.
Gostava de escrever na cozinha sentindo o cheiro suave de um bolo que sua mãe
criava. Criar? Já no curso fundamental repetia para si mesma a frase ouvida: Na
natureza nada se cria nada se perde; tudo se transforma. Era uma simples frase
de um físico chamado Lavoisier. Que frase! Ecoou por dentro muitos anos. Tinha
gosto não de bolo, tinha que mastigar muito mais para descobrir seu paladar.
Transformamos nossas vidas a cada giro no pensamento, seja rotativo ou
translativo. Humano algum pode criar, mas o importante é nunca parar. O mundo
se transforma a cada minuto. As unidades de medidas se agigantam, quando dentro
de nós as grandezas ficam inversamente proporcionais. Valorizamos consumos
desenfreados, famas passageiras, flores sem raízes, uniões sem gerações, vasos
betumados, adorações inúteis. Tão pequenos nos tornamos. Quanto mais humilde
mais se entende as pessoas. Quanto menos móveis menos bagagens para carregar.
Quanto menos ídolos mais de nós mesmos. O mundo se fatiou. Tem pedaços para
todos os lados de o mundo e cada mundo se adorou como se fez. Tribos e mais
tribos sem união. Sem união sujeito e predicado não se encontram. Faz-se
intransitivo. De ligação e ficamos, permanecemos, estamos autônomos. Eslide
peregrina, ela carregava as cenas do mundo, enxugava pratos para não deixar
suas lágrimas saírem de seus olhos sensíveis. Queria entender o mundo e as
pessoas, sem nem mesmo se entender. Teve momentos históricos e
vaidosos. Queria ser escritora sem buscar ensinamentos. Acreditava que sem
conhecer fórmulas mágicas e alheias escreveria originais. Não faria como Eça,
nem como Machado que imitaram bem um Balzac. Cansou um pouco de tantos
conselhos ouvir. Foi estudar. Conheceu um pouquinho de outros mundos. Amava
ficar escondida em seu mundinho, em seu cantinho semiótico. Não sabia nem o que
pretendia. Só desejava passar a vida escrevendo. Até ficou debilitada em falar.
Não importava; escrever prevalecia. Qual motivo? Quem saberá! A mente de Eslide
era incansável. A arte de pensar era sua rotina, passava horas e horas
analisando, pensando, refletindo sobre tudo e todos. Não cessava de pensar.
Atentava em detalhes. Certa vez se deteve mais tempo recordando um casal
almoçando e a cena parou, silenciou, para que o homem ouvisse o bater de asas
de um beija-flor na janela do restaurante. Era de um filme? Amava a
sensibilidade. Amava minimizar. Amava as manhãs renovadoras. Cada dia uma nova
luz. Um raiar de melhores pensamentos. Lapidação da escuridão em luz. Areia e
pérola. Até que com o tempo escrever foi se diluindo. Esvaneceu. Da
luz que recebeu veio o pensar. Veio o encontro com o signo maravilhoso e seu
criador Derrida: desconstrução. A vaidade se desenrolou feito céu na terra e
Eslide percebeu que escrever não era mais importante. Não mais necessitava ser
escritora. Desconstruiu-se. A arte de pensar, o silêncio tornou-se mais
precioso. A vaidade terá infinitos livros desnecessários. Desnecessárias
palavras. Cenas desnecessárias. Raras leituras nos modificam. O mundo se
encheu. O mundo se sucateou. Os valores decaíram. Tudo em excesso. Tudo em
excesso faz mal. Mal que só termina com o bem. O que é mal e o que é o bem?
Dicotomia inexistente para quem se achou. Parâmetros. Cultura. Vigotsky sabia
da influência de uma cultura. Simbologia atrai. Pense em uma pomba.
Significados. Quão maravilhoso é perceber significados. O que sua mente faz com
você ao pensar em uma pomba? Podia ser qualquer coisa, mas pensei em uma pomba.
Não foi proposital, foi oportuno. Eslide teve um habito em São Paulo de visitar
sebos. Foi que se encontrou, pela primeira vez, com Patrick Suskind e seu livro
A pomba. Que livro. Um livro curto com ocêanica mensagem. O que a simbologia
pode fazer com alguém. Eslide teve um grito – brainstom - dentro de si. Tão
grande foi o impacto que escreveu um conto sobre o livro: Um livro era o
título. Tinha que homenagear este homem. Foi que Eslide confirmou seu pensar,
pois percebeu o que seria um escritor. Estava longe disto mesmo. Com a
desconstrução, a implosão de si, a metamorfose gerou uma energia muito mais
além do que pensava. Passou mais a observar, olhar a natureza, olhar o mundo,
olhar as pessoas, buscava ações. Buscava servir com outras ferramentas. O
resultado era bem maior. Ainda escrevia alguns textos para incentivar e ajudar
algumas pessoas. Parou de usar bengalas. Bengalas me fazem pensar em José Paulo
Paes e seu poema À bengala: Contigo me faço pastor de meu rebanho de meus
próprios passos. Não é lindo?
Tenho
que atravessar a rua, sorrir para as pessoas, ouvi-las me silencia. Silêncio. O
mundo se tornou tão barulhento. Tão permissível. Tão tudo pode. Que tudo pode
mudar. Mudar rimas. Mudar a cor dos cabelos. Mudar o vírus. Mudar a face. Mudar
o tom. Mudar as máscaras. Mudar ilhas. Mudar a escrita. Mudar o mudar. E tudo
vai continuar como está. Será? Pensou na pomba? O que pensou? Leu A pomba?
Daria um belíssimo curta. Curta a leitura. Curta sua casa, seus objetos, curta
seus sonhos realizados, curta suas buscas, curta sua órbita, curta sua vida,
porque curta ela é! Eslide teve uma vida bem curta, mas deixou o melhor por
aqui. Ela nasceu sem forma e sem luz como o princípio do mundo; mas teve um dia
em sua vida, que mergulhou nas águas e quando voltou tudo realmente se
desconstruiu, a vaidade desceu rio abaixo. Ela encontrou seu Criador e Ele
disse: Haja Luz! E a luz se fez! Eslide se iluminou, virou estrela e até deixou
um texto: Cada vez mais Jesus é a mais forte presença em meu ser; como se fosse
eu, um velho tronco morto florescendo sem explicação. Só mesmo pelas mãos do
Senhor poderia um tronco morto dar folhas, flores e frutos; fora de sua época,
fora de sua natureza, porque Ele é o Deus do impossível, quando Ele quer um
milagre mostrar, não importa se tem água, raiz ou terra fértil, Ele,
simples-mente, diz: Floresça tronco morto! E o tronco renasce!